JornalDentistry em 2024-2-15

EDITORIAL

Desempate é sempre analógico

Este mês ouvi pela primeira vez um podcaster americano com grande divulgação mundial e responsável pelo podcast “The Joe Rogen experience” dizer que talvez esta geração que está agora a nascer possa ser a última completamente biológica.

Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia

Ou seja, a última a ser 100% humana, pois a integração da inteligência artificial no dia-a-dia pode muito bem deixar de ser uma extensão das nossas funções e capacidades, para se integrar completamente nos nossos sistemas neuronais e motores.
Confesso que me falta informação para ver esse caminho claro na evolução, mas se analisar a mudança na sociedade que decorreu apenas nos últimos 30 anos, não posso negar que pode muito bem vir a ser verdade. Todos sabemos que a magnífica capacidade de adaptação que distingue o ser humano dos outros animais sempre foi uma condição suprema na nossa supremacia e expansão. Mas também confesso que a constante e exponencial adaptação que a minha geração tem sofrido, nomeadamente no que diz respeito aos recursos tecnológicos e a avassaladora quantidade de informação para assimilar, são um desafio a essa capacidade de adap- tação. A verdade, e já escrevi isto aqui, é que o que estamos a aprender hoje, o que estamos a ensinar hoje, pode servir-nos de pouco daqui a mais 30 anos. E esta possibilidade encerra em si mesma um desafio aliciante e, ao mesmo tempo, contempla uma instabilidade constante, que num organismo que tende a poupar energia aperfeiçoando rotinas pode ser paralisador, traumatizante ou desconcertante.
A psicologia diz que, após um período traumático, é necessário um período de acalmia para reequilibrar forças e energias. Tal qual as ondas que chegam à praia em ritmos de bravura e repouso, assim o nosso ritmo, pelo menos enquanto 100% humanos, é circadiano, alterna atividade com sono, trabalho com lazer, contração com alongamentos. O que a psicologia também diz é que desde a COVID-19, uma das maiores ondas, tsunamis, que atingiu a Humanidade nos últimos tempos, ainda não paramos para descansar. Desde os zooms e o trabalho remoto, à ligação on 24h por dia, e às horas seguidas “conectados” ao ecrã. A ciência já identificou em TACs cerebrais um padrão de alteração semelhante entre dependentes de drogas e utilizadores de redes sociais em telemóveis no mínimo de 3h/ dia. Afinal a epigenética existe mesmo. Os nossos hábitos modulam-nos o comportamento e, pelos vistos, também o órgão por excelência que os controla: o cérebro.
Da possibilidade da tecnologia modular o nosso cérebro à probabilidade de sermos seres biologicamente tecnológicos já na próxima geração, vai uma diferença. Se grande ou pequena, isso já não consigo dizer. Entretanto, atualmente, continuamos a ser médicos dentistas 100% biológicos a trabalhar numa era digital onde a inteligência artificial tem, cada vez mais, um papel preponderante, sobretudo a gerar imagens. E digo gerar porque, efetivamente, o que noto mais frequentemente é que quanto mais interferência da inteligência artificial, mais rapidez na aquisição ou no resultado final das imagens, mas também maior risco de deformação/ geração duma realidade em vez de 100% de reprodutibilidade dessa realidade. E o desempate é sempre analógico. O desempate é sempre feito pelo um olho humano, por uma mão humana, por um cérebro até ver 100% humanos.
No dia mundial da luta contra o cancro que se celebrou a 4 de fevereiro, ouvi o Prof. Dr. Sobrinho Simões reconhecido patologista português, reconhecido em 2018 como um dos anatomopatologistas mais influentes do mundo, dizer que mais de 80% dos diagnósticos que faz hoje são segun- das opiniões. E, na maior parte, corrige o primeiro tiro que a inteligência artificial incorporada nos programas de geração de imagens de diagnóstico sugere.
Se isto não significa que a inteligência artificial é má, continuo a anteci- par que a ponderação analógica/humana é essencial. Resta saber qual a percentagem de cada uma vamos ser nas próximas gerações!
Boas leituras!

 

Célia Coutinho Alves, Médica Dentista Especialista em Periodontologia pela OMD, Doutorada em Periodontologia pela Universidade Santiago de Compostela

 

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