JornalDentistry em 2022-10-15

EDITORIAL

Demora muito?

Escrevo este editorial no Dia Mundial do Sorriso. Há quem diga que estes últimos anos têm sido de felicidade adiada. Ou, que eramos felizes e não sabíamos. Primeiro, veio a pandemia, depois a guerra, agora a recessão económica.

Célia Coutinho Alves, DDS, PhD, médica dentista doutorada em periodontologia

E há quem diga que a infelicidade não existe. O que existe é apenas a pressa de ser feliz. E custa-nos perceber (e basta olhar para a natu- reza à nossa volta) que o imediatismo com que queremos as coisas, torna-as impossíveis de alcançar. Um médico dentista demora anos a formar. Um cirurgião, anos a treinar. Um edifício anos a construir. Já não temos paciência para o tempo das coisas, nem tempo a perder para as alcançar. 

Já não há paciência para as formações online, mas também já não há paciência para nos metermos num avião e passar 8 horas por dia numa sala fechada a olhar para um ecrã. Já não há paciência para as coisas tri- viais do consultório e os pacientes já não têm paciência para as nossas cadeiras, para estar de boca aberta. Estamos todos esgotados. A lentidão com que a felicidade teima em chegar, esgotou-nos nestes últimos anos. Muito recentemente, um grupo de especialistas norte-americanos reco- mendou mesmo, pela primeira vez, que todos os adultos abaixo dos 65 anos façam um rastreio para diagnosticar mais precocemente ansiedade, depressão e até risco de suicídio. Posso estar a fazer uma análise com- pletamente ao lado, mas é genuinamente o que sinto. E sinto outra coisa: que às vezes essa pressa de ser feliz, faz-nos passar sinais vermelhos, ultrapassar pela direita ou entrar em contramão para cortar caminho. Con- fesso que não sou fã do “vale tudo”, do “a qualquer custo”. Não foi assim que aprendi e os 15 anos a ser catequista também não foi isso que me ensinaram. Sobre-tratamentos, mockups digitais irrealistas, dentes que se alinham por videochamada. A sociedade atual traz até nós pacientes que já não chegam com a foto da sua artista ou atriz favorita para copiarmos o sorriso. Trazem fotografias suas, mas com filtros. Querem, narizes, olhos, ângulos, lábios e dentes iguais aos seus..., mas filtrados. Querem olhar-se ao espelho e ver o mesmo quando olham para uma fotografia à qual apli- caram alguns filtros. A realidade já não satisfaz, já não traz felicidade. Pelo menos tão depressa como a aplicação dum filtro sobre uma selfie. 

Sinto que a clareza de seguirmos aquilo que somos e não o que outros pensam que somos, ou esperam que sejamos, é cada vez mais difícil de encontrar. Um sociólogo Americano do século 20 chamado Charles Horton Cooley deixou escrito, num resumo muito feliz ao analisar a complexidade da nossa identidade enquanto indivíduos, o seguinte: “I am not who you thinkIam;IamnotwhoIthinkIam;IamwhoIthinkyouthinkIam.“-Eu não sou quem tu pensas que eu sou, eu não sou quem eu penso que eu sou; eu sou quem eu penso que tu pensas que eu sou. A nossa identidade passou a ser a minha perceção da perceção que os outros têm de mim. Assim, perpetuamos um ciclo em que queremos encaixar nas expectativas que achamos que os outros têm para nós. E sentimos, muito vezes, que não pertencemos, se não formos iguais. Se não sorrirmos em todas as sel- fies com dentes brancos e alinhados, e pele lisa e aveludada. 

A vida é muito mais que um curriculum. Construir uma vida é muito mais que construir um curriculum. Este é o comparável. O que os outros, os pares, os empregadores valorizam e comparam. A vida é o incompará- vel, o que ninguém pode medir o valor, a não ser nós mesmos. E às vezes fazemos listas do que queremos na vida, mas poucas vezes fazemos listas do que temos de fazer, investir, aprender para as conseguir. Começar por entender os três pilares onde o comportamento do ser humano assenta, é essencial. Não só para nos irmos redefinindo e regenerando mentalmen- te, como médicos dentistas e prestadores de cuidados de saúde oral, mas também, para melhor entendermos os anseios dos nossos pacientes e o sentido em que a sociedade se vai movimentando. Esses três pilares são: 1 - o nosso elemento, aquilo em que somos bons, que fazemos bem; 2 - o ambiente em que nos movemos, que nos é mais natural e; 3 - a energia que pomos e tiramos das coisas, se funcionamos melhor com níveis altos de energia e stress, ou se pelo contrário, preferimos ambientes mais sere- nos, consultas mais espaçadas e tempos de consulta maiores. Conhecer- -nos é meio caminho andado para nos autorregularmos. E assim, quando andarmos esgotados ou infelizes, temos de procurar qual destes 3 pilares pode estar a funcionar menos bem e trabalhar no seu equilíbrio. Hoje, no dia do sorriso, a escrita fugiu-me para a pressa de ser feliz e de como a saúde mental pode, também, afetar a saúde oral. Dos que zelam por ela (médicos-dentistas), e dos que a procuram (pacientes). Temo que os sorri- sos que tratamos possam vir a ser cada vez mais brancos e perfeitos, mas também, cada vez, mais falsos e apagados. Mas desejo, ao mesmo tempo, que esta análise possa estar errada. No entanto, a verdade é que, até ver, à realidade ainda não podemos aplicar filtros... 

 

Célia Coutinho Alves , Médica Dentista Especialista em Periodontologia pela OMD, Doutorada em Periodontologia pela Universidade Santiago de Compostela 

 

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